"Chovia muito naquela quinta-feira..."
Seria bom não ter que começar mais um texto sobre um show falando sobre o tempo, mas é difícil não lembrar da tempestade que caía no Rio de Janeiro. Na praia de botafogo era impossível ver alguma coisa através da janela do ônibus. A passagem subterrânea que levava até o Canecão estava com várias poças d'água suja do esgoto, como é de praxe com qualquer chuva em vários pontos no Rio de Janeiro, que dirá com a chuva forte que desabava.
Chegando no Canecão a situação parecia desoladora. A casa vazia, especialmente nos lugares mais caros, onde no máximo uma dúzia de mesas eram ocupadas, enquanto que os lugares mais, hm, populares tinham metade das cadeiras ocupadas. O mais provável é que, mesmo que estivesse fazendo sol às 9:30 da noite a situação não seria tão diferente, mas com certeza muitos desanimaram em se aventurar pelas ruas caóticas e alagadas para presenciar o show da diva Jane Birkin.
A solução da produção foi liberar as mesas para as pessoas que estavam nos lugares mais distantes, o que acabou deixando-as quase que totalmente ocupadas, pelo menos ali na frente do palco, criando um ambiente intimista, o que nem é tão próprio do tamanho do Canecão.
Com o público devidamente rearranjado, entram os músicos. Primeiro Frederick Jacquemin se encaminha para a bateria, para acompanhar a programação eletrônica que inicia quando ele se senta atrás do bumbo. Logo depois ele deixa as discretas batidas cool jazz pré-programadas e passa a tocar uma espécie de mini-xilofone. Enquanto isso entram Christophe Cravero, tocando um belo piano de cauda que ficava à esquerda no palco, e Thomas Coeuriot, com cabelos a la Wolverine, no teclado.
Eles fazem a trilha para a entrada de Jane Birkin. Assim como Bob Dylan, que esteve por esses dias aqui, só a presença dela é algo impactante. Afinal, é uma artista com história, estamos diante de alguém que viveu muita coisa antes de cantar em Botafogo as canções que se seguiriam.
Atriz que participou de um momento histórico do cinema (primeiro nu frontal num filme, Blow Up), mulher, parceira, inspiração e voz de Serge Gainsbourg, mãe da também cantora-atriz Charlotte Gainsbourg, musa de muitos artistas novos... Tudo isso está ali, em cima do palco. Mas há muito mais. Há uma beleza especial, mesmo estando ela em trajes completamente informais: uma calça cargo, verde bem escuro, com compridas e finas fitinhas de cores verde e roxa saindo da altura do bolso e um pullover preto, com uma blusa cinza por baixo.
Ela se dirige ao microfone caminhando levemente, como se estivesse ali por acaso e começa a cantar "My Secret", escrita por Beth Gibbons (Portishead). Sua voz é doce e ao mesmo tempo áspera, porém toda a casualidade e simplicidade que ela exala não conseguem se impor diante da hipnose produzida pela música e pelo seu canto. A canção é triste e dolorida, e ao mesmo tempo leve, quase etérea.
Nos números seguintes vamos aprendendo que aquele trio de músicos tinha algo de especial: cada um se dedicava a, no mínimo, três instrumentos diferentes. E em todos executados de forma magistral. O jovem pianista Christophe vai para a frente e pega um violino, Thomas "Wolverine" ruma para a direita do palco e passa a comandar cordas, começando com violão e depois indo para o bandolim e até para uma mini-harpa. Já Frederick Jacquemin segura um baixo enquanto pisa o pedal do prato de contra-tempo da bateria. Uma excelente banda, econômica e precisa, com belos arranjos que estão tão bons ou até melhores do que nos discos.
Jane Birkin canta com um sorriso largo e os olhos dela se fecham e desaparecem quando ela sorri. Ela desce ao público em "Sans Toi" e vai cantando enquanto passa por entre as mesas, circundando as mesas ocupadas, para a alegria dos presentes, fazendo a volta completa até se sentar na borda do palco, criando o tal ambiente intimista dito mais acima.
Entre as músicas, Jane conversa bastante, o que ajuda no momento em que os músicos estão trocando de insturmentos - e isso acontece durante todo o repertório. Pergunta se gostaríamos que ela falasse em inglês ou em francês e uma maioria ruidosa pede que seja em francês. Felizmente ela tenta falar sempre nas duas línguas.
Em uma das vezes onde o francês predominou, era possível entender quando ela disse Magic Numbers, e então ela canta uma música que a banda dos gordinhos fizeram para ela, "Steal Me a Dream". Jane Birkin fica praticamente imóvel, com os braços pra baixo, junto ao corpo, mostrando as palmas da mão. Não dava para desvencilhar do olhar dela, sofrido, contido, assim como sua voz, e logo seu sorriso novamente se abre, como se ela estivesse querendo traduzir em expressões o sentimento da música.
A partir mais ou menos da sexta música, Jane começa a falar de Serge Gainsbourg, e não pararia mais até o final. Ela age como uma embaixadora e porta-voz da chanson de Gainsbourg. Se derrete ao dizer que ele é o maior poeta que a França já teve. Conta que quando esteve na República Tcheca, para explicar a importância de Serge Gainsbourg, disse que, assim como existe antes e depois de Kafka, na França existe o antes e o depois de Serge Gainsbourg.
E assim ela segue a parte storytellers do espetáculo, onde ela explica canções de Serge como "Le Moi et Le Je" e conta que não sabia antes como pronunciava "Laetitia", a canção seguinte. Após "Laetitia", dois dos músicos saem de cena, ficando somente Christophe ao piano. Jane Birkin começa a declamar o poema Image Fantôme, de Hervé Guibert, interpretando-o, com expressões doloridas. Na música seguinte voltam os músicos multitarefas.
Frederic Jacquemin segura cada nota do baixo por um longo tempo, fazendo-o reverberar por todo o salão, preenchendo o silêncio, enquanto a mini-harpa e o piano funcionam como um realejo. A voz de Jane Birkin está magnífica, no seu ápice naquela noite, emocionante.
Chega a hora dela voltar a relaxar, ao anunciar que vai cantar Leãozinho, de Caetano Veloso. Ela explica que como não sabe falar português, teve que aprender a cantá-la através dos fonemas das palavras. Segura algumas folhas de papel para auxiliá-la e canta de forma um tanto quanto desastrada e adorável. Mas logo ela muda o tom, passa para a contestação, ao lembrar dos problemas que ocorrem na Birmânia (hoje Myanmar), em especial na prisão da ativista e líder da oposição Aung San Suu Kyi, há mais de 15 anos em prisão domiciliar em seu próprio país.
Jane Birkin diz que não podemos nos esquecer, que nós não temos idéia do que acontece por lá. Suas mãos chegam a tremer, e ela se entrega à canção feita por ela, com o nome da líder oposicionista. Ela continua segurando os papéis e lê alguns trechos, como se fossem declarações de manifestos.
Da indignação para a tristeza, com mais uma música escrita por Beth Gibbons, "Strange Melody", cortante em versos como "No one else can hear / No one else can save her now". Em "Je M'apelle Jane" surge uma voz do meio da platéia. Era um rapaz de nome Christophe fazendo dueto com Jane, no lugar que, no disco "Rendez-Vous" pertence a Mickey do grupo francês Mickey 3D, com a diferença que o cantor que estava no Canecão era bem menos soturno que os vocais graves registrados por Mickey 3D.
Não demora muito para Jane Birkin voltar a falar de Serge Gainsbourg e de sua importância e ilustrar isso com "La ballade de Johny Jane". "C'est Comme Ça" é cantada novamente só com o piano acompanhando. Mas a melhor música vem numa cover de Tom Waits, a linda, linda, linda "Alice", que fica exponencialmente melhor nos arranjos e na voz de Jane.
O sorriso volta ao rosto dela ao explicar a genialidade de mais uma letra de Serge, onde "ele diz que veio para dizer que se vai" e canta "Je Suis Venu Te Dire Que Je N'en Vais". "Ex-fan des Sixties" é um divertido index de nomes de alguns astros de rock dos anos 50 e 60. E do T. Rex.
Na volta para o bis Jane Birkin se despede nos deixando na memória "Manon" e fechando com "L'aquoboniste". Os aplausos não paravam, assim como a chuva lá fora, que já não castigava mais. Fazia todo sentido do mundo sorrir entre os longos espaços sem marquises; as gotas haviam virado conforto na alma.
Um comentário:
DIVA FRANCESA...MAS,ELA NÃO É INGLESA?TUDO BEM,FOI NA FRANÇA COM SERGE,QUE ELA BLOW-UP LITERALMENTE NA CANÇÃO,MAS...OBRIGADO E DESCULPE A IMPERTINÊNCIA.ÓTIMAS FOTOS.QUE MULHER!CHARMOSA EM QUALQUER IDADE,UM MONUMENTO À FEMINILIDADE .nino.bellieny@hotmail.com
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